O ordálio democrático e a “Lei Barreto”

Há uma tendência – popular, populista, demagógica e totalitária – que defende a prisão como cura de todos os males da política (e, supõe-se, de tudo o resto). Actual, contemporânea, muito portuguesa. 
A lógica mínima é esta: não é necessário julgamento porque, das duas uma, o malandro em questão salvar-se-á sempre ou então os juízes são “corruptos”, isto é, serão pagos pelo malandro para o declararem inocente. A lógica máxima é pior: dispensam-se prisões preventivas (aplicadas de acordo com os fundamentos da lei), julgamentos, testemunhos, recolha de provas, formalidades processuais e toda a espécie de formalismos. Basta a suspeita, o diz-que-diz, a notícia (de um jornalismo pobre que desistiu da investigação jornalística…), o rumor, o dedo esticado ou, sinal dos tempos, o Facebook: houve crime. 
E só poderia haver porque, para os defensores da coisa, os políticos, os banqueiros, os “poderosos” (signifique isso o que significar) são todos criminosos potenciais, inevitavelmente “corruptos”, que só não fazem pior porque andam umas quantas luminárias atentas e prontas a apontar o dedo em prol da “transparência” e a obrigar alguns juízes, queridos ou malqueridos, dependendo dos dias, e o Ministério Público a irem buscar essas pessoas a casa.
O pensamento subjacente a esta tendência é quase medieval e não se distancia muito do processo conhecido por “ordálio” em que o acusado era sujeito a provas que revelariam, pela intervenção divina, se era culpado ou inocente.
Em Portugal, por exemplo, havia o ordálio do ferro em brasa: na mão do acusado era posto um ferro em brasa, numa cerimónia devidamente orientada pelo juiz e por um sacerdote; a mão, fechada em redor do ferro em brasa, era coberta com cera e enfaixada. Se, três dias depois, não houvesse nenhuma ferida na mão, ficava demonstrado que Deus intercedera a seu favor e o declarava inocente. Mas se houvesse ferida seria declarado culpado e logo condenado.
O pensamento dos entusiastas da prisão não anda muito longe disto. Não lhes interessam as leis, que nunca quiserem ler, julgam-se uns iluminados e funcionam por causas pessoais: hoje é aquele banqueiro, amanhã é aquele político, depois de amanhã até pode ser o vizinho do lado porque fez demasiado barulho à noite.
António Barreto, pensador ilustre, sociólogo, académico inteligente, acabou de lhes fazer um favor. 
Ao jornal “i” confessou alguns “desejos” para 2015 e não se coibiu de acrescentar, com alguma displicência: “Evidentemente que posso sempre acrescentar que gostaria de ver algumas pessoas presas.” E quem? Bom, aqui é que a porca já torce o rabo. “Não digo nomes”, afirma Barreto, “mas são alguns banqueiros, empresários, administradores de empresas, ex-ministros, ex-secretários de Estado, ex-directores-gerais... Gostava de os ver presos.” Porquê? Isso é que já não saberemos. Nunca ninguém se arrisca nos pormenores, nestas circunstâncias.
António Barreto foi ministro da Agricultura no I Governo Constitucional (1976 – 1978) e alvo de uma campanha feroz do PCP devido à sua “Lei Barreto”, que desferiu um sério golpe na Reforma Agrária.
Se, por um acaso da História e por um conjunto de circunstâncias, o PCP tivesse chegado depois disto ao Governo e prevalecesse a sua linha mais radical, António Barreto poderia ter passado por esta nova versão do ordálio medieval, acusado de traição aos interesses do povo, de estar “vendido” ao capitalismo e aos “grandes agrários”.
A História tem destas ironias.


Pedro Garcia Rosado
http://pedrogarciarosado.blogspot.pt

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