A esquerda inculta (2): o Estado e a não revolução

O alarido a propósito dos problemas que o primeiro-ministro teve em matéria fiscal e no que se refere à Segurança Social contrasta, à esquerda, com o alarido que foi feito quando o actual governo reforçou a obrigatoriedade da factura especificamente em algumas áreas económicas. Alguém se lembra do muito que se escreveu, em protestos irados, quando à possibilidade de andarem na rua os “novos pides” a verificar se o cidadão tinha pedido a factura da bica? Alguém se lembra de que a coisa foi ao ponto de um ex-secretário de Estado ter anunciado que mandaria qualquer fiscal “tomar no cu” se isso lhe acontecesse?
Mas é praticamente esse controlo que a esquerda saúda ao abordar o assunto. 
Sabemos hoje que as receitas fiscais sobre as actividades económicas aumentaram graças a esse reforço da obrigatoriedade da factura, sendo também resultado do anúncio de prémios (o crédito em sede de IRS e os automóveis).
Mas ainda agora o governo grego que tanto encanta a esquerda portuguesa fez saber da sua intenção de contratar pessoas quase ao calhas para fiscalizar as facturas e, sobre isso, o que se ouve é o silêncio. A criação de denunciantes fiscais “ad hoc” pelo governo de extrema-esquerda da Grécia não perturba, no entanto, as boas almas da esquerda portuguesa.
A política fiscal do governo grego será, aliás, a melhor pedra de toque para verificar a pouca consistência da esquerda portuguesa. 
O extremismo grego e o seu vigilantismo fiscal vão ainda mais longe em matéria de tirania fiscal do que a administração portuguesa porque os funcionários do fisco regem-se por leis bem claras e sujeitam-se às normas decorrentes do seu incumprimento. Mas os denunciantes fiscais do ministro grego Varoufakis podem ser tanto vizinhos invejosos ou antipáticos como cidadãos probos.
Para a esquerda portuguesa, as decisões políticas só são boas se forem provenientes de governos de esquerda. Se provierem de governos de direita (ou do temido “centro”) são todas más.
E este absolutismo político é revelador da enorme incultura da esquerda. 
Quando se extasiam com as boas intenções do governo grego esquecem-se de uma coisa: as medidas que poderiam dar resultado só poderiam ser aplicadas com o reforço dos mecanismos policiais, o fecho das fronteiras, a nacionalização de todos os bancos e a supressão da liberdade de expressão. Ou seja, pela violência e pela força. 
E isso é uma coisa que assusta? E se é, porquê? Porque nunca leram “O Estado e a Revolução”?
A esquerda portuguesa perdeu a capacidade de pensar, de estudar, de ler e de reflectir. De uma ponta à outra, ignoraram ou esqueceram-se dos clássicos do marxismo, esqueceram-se da análise da História por Marx e Engels, dos escritos doutrinários de Lenine e, mesmo, dos textos de Estaline, de Mao e de outros revolucionários de tempos menos recuados.
Esta ignorância, ou iliteracia política, torna-a ziguezagueante, oca, palavrosa, incapaz de distinguir o essencial do acessório, atenta mais à espuma das ondas do que ao movimento das marés.
Jerónimo de Sousa ou Arménio Carlos, só para citar os casos mais flagrantes do que é visto como a esquerda “vintage” e talvez os melhores exemplos, nunca serão Álvaro Cunhal. Nunca leram os clássicos, nunca escreveram sobre eles, nunca reflectiram sobre a História e as circunstâncias económicas, nunca souberam aliar a teoria à prática.
No primeiro congresso depois do 25 de Abril, o PCP retirou o conceito de “ditadura do proletariado” do seu programa para não “assustar” o povo. Mas não deixou de pensar nesses termos. 
Hoje, a ignorância profunda da esquerda portuguesa deve fazê-la tremer perante o simples conceito de uma “ditadura”. Mas se os seus entusiastas forem ler “O Estado e a Revolução” perceberão, entre outras coisas, porque é que o governo grego vai falhar, o que são realmente uma ditadura e uma tirania “justas”, porque é que a cobardia, na política como em tudo, é sempre uma manifestação antecipada de derrota e porque é que, desde 2011, ainda não conseguiram demitir o actual governo e expulsar a “troika”, ou equivalente.



Escritor e tradutor
http://pedrogarciarosado.blogspot.pt

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O fim do jornalismo português (4)

O porco com asas

Maria José Morgado. As coincidências no Expresso de 13 de Agosto.