Colectânea angolana I

Escritos de Rui Verde- Junho/Julho 2015 publicados na MakaAngola e no Club-K

O Direito Não Deve Ser Uma Anedota em Angola

Se visse um elefante amarelo a dançar na baía de Luanda não ficaria mais estupefacto do que quando li sobre as questões levantadas no recente interrogatório a José Gama feito pelo Ministério Público.Aparentemente, nesse interrogatório, a investigadora estava interessada em saber detalhes sobre ligações ao Club-K e a Rafael Marques.A questão é que a actividade do Ministério Público, como de qualquer órgão do Estado, está sujeita à lei e não depende do arbítrio do funcionário.Se o Ministério Público estivesse a investigar algum crime eventualmente levado a cabo por Rafael Marques ou pelo Club-K, e José Gama fosse testemunha, teria sentido, no âmbito desse inquérito, fazer perguntas sobre ambas as entidades. Não correndo, aparentemente, o interrogatório nesse âmbito, não pode o Ministério Público fazer perguntas que extravasem o seu mandato.A grande exigência que se deve fazer ao Estado é o cumprimento da lei, da lei que ele próprio aprovou. Quando o Estado aprova uma lei, essa lei não é para ser aplicada aos outros. A aplicação da lei começa no próprio Estado.Tem-se assistido nos últimos tempos, em Angola, a uma desconsideração absoluta do Direito. Parece que as formulações legais apenas existem como bandeiras de boas intenções, e quando se trata de aplicar a lei… a sua existência é esquecida.Por isso, este é o tempo do Direito. Os juristas devem empregar os meios legais para obrigar o sistema judicial a funcionar, obrigar o sistema judicial a tomar o partido da lei.A grande revolução que pode ter lugar em Angola não é a dos jovens leitores de livros, é a da exigência da aplicação da lei.O que traz o verdadeiro progresso a um país não é o preço do petróleo, mas o cumprimento de regras iguais para todos, do Estado de Direito.Portanto, quando pessoas são presas sem mandado, quando pessoas são interrogadas fora do objecto do processo, quando os formalismos judiciais não são cumpridos, é a lei que deve ser invocada.A constante exigência da aplicação correcta da lei levará à sua efectiva aplicação.



Dos Santos imita Putin e decreta fim das ONGs

A sociedade civil é geralmente definida como o agregado de organizações e instituições não-governamentais que manifestam o interesse e a vontade dos cidadãos. Mesmo Hegel, o filósofo do Estado moderno, considerava que a sociedade civil, com as suas contradições, tornava o Estado e a sociedade nacional mais eficientes.


Por isso, assumindo que Angola está a consolidar a sua democracia nos termos da Constituição de 2010, é com espanto que se vê surgir o decreto presidencial n.º 74/ 15 de 23 de Março, que regulamenta as organizações não-governamentais (ONG).

Este Decreto segue a técnica jurídica utilizada pelo novo autocrata russo Vladimir Putin, que introduziu em 2012 legislação que obrigou as ONG estrangeiras a registarem-se no Ministério dos Negócios Estrangeiros como “ agentes estrangeiros”. Tal transformou, na prática, todos os trabalhadores das ONG em hipotéticos “espiões”.

O decreto presidencial angolano detém uma série de mecanismos que tornam praticamente impossível o trabalho independente e imparcial, enquanto representantes da sociedade civil, por parte das ONG.Vejamos em detalhe os artigos mais cerceadores da liberdade e democracia garantidos pela Constituição.Os artigos 7.º e 8.º obrigam as ONG a uma inscrição/registo junto do Governo, podendo este ser tacitamente indeferido em caso de inconformidade documental.

Portanto, a criação de uma ONG passa a depender, em última instância, da vontade administrativa do Governo.O artigo 10.º obriga a uma inscrição no Ministério das Relações Exteriores. Na prática, repete a lição russa.O artigo 11.º obriga a uma inscrição no Instituto de Promoção e Coordenação de Ajudas às Comunidades (IPROCAC).

Temos aqui um terceiro acto burocrático, apenas para legalizar uma ONG em Angola. Bem se vê que existe uma intenção legislativa de complicar a entrada deste tipo de instituições e organismos.O artigo 15.º obriga ao strip tease financeiro das ONG e impede-as de desenvolver qualquer actividade adversa aos princípios defendidos pelos órgãos de soberania nacionais (artigo 15.º, n.º 2, alínea l in fine). Portanto, não pode existir qualquer ONG que defenda princípios diferentes daqueles que são defendidos pelo presidente da República.

Este artigo é excessivo e pode, aliás, representar o fim da pluralidade democrática.Acresce que os n.º 3 e 4 do mesmo artigo 15.º apenas deixam operar qualquer ONG, em termos financeiros, depois de um acordo obrigatório com as autoridades angolanas. Ou seja, sem acordo não há financiamento. Na realidade, sem autorização governamental expressa, não há qualquer ONG a operar em Angola.O artigo 18.º atribui a supervisão das ONG a um membro do Governo.

«Supervisão» pode ser definida como um acto de orientar, guiar, motivar e gerar resultados entre as instituições supervisionadas. Não entrando em preciosismos jurídicos, dir-se-á que esta «supervisão» implica intervenção directa nas actividades.Portanto, também ao nível da gestão, com este decreto presidencial, as ONG deixaram de ser independentes. Podemos ainda citar os artigos 20.º ou 23.º como cerceadores da liberdade de associação e de constituição das ONG.

A verdade é que, a partir deste decreto, deixou de haver ONG livres em Angola. Ou se trata de um grave erro jurídico dos serviços legais da Presidência da República ou, e não se quer acreditar, de uma tentativa putinesca de limitação das ONG.

Competirá às forças vivas angolanas, às autoridades competentes e aos tribunais pedirem e declararem a inconstitucionalidade das normas deste decreto, que indubitavelmente atentam contra a liberdade de associação, de expressão e demais direitos fundamentais.É pela justa aplicação do Direito que um país se transforma num Estado de Direito moderno e justo.

A Inventona: Um Caso para o Poder Judicial Angolano

Em 1982, o ditador argentino Leopoldo Galtieri, confrontando com graves problemas internos, resolveu criar uma manobra de diversão e ocupou militarmente as ilhas Malvinas (ou Falklands), dominadas pelos ingleses. Depois do aplauso inicial, a queda da ditadura precipitou-se inexoravelmente.Atualmente, o panorama angolano não é melhor que o panorama argentino em 1982. A uma crise de poder prolongada devido à falta de funcionamento real das instituições, está a somar-se uma grave crise financeira e económica, em que o símbolo do poder e da riqueza de Angola, a Sonangol, surge como um gigante de pés de barro, à beira da falência e parecendo demonstrar ter sido alvo de uma gestão negligente (para dizer o mínimo).Face a isso, o presidente, mais sábio que o ditador de opereta Galtieri, fomentou aquilo que em bom português se chama uma inventona. Não é um golpe de Estado, não é uma tentativa de golpe de Estado, é uma invenção de tentativa de golpe de Estado.A inventona presidencial corresponde às melhores técnicas de controlo de poder, e procura unir o povo contra os perigos da instabilidade, criando um inimigo interno que aparentemente lia livros e trocava emails com trabalhos académicos, acenando-se pelo meio com os trágicos acontecimentos de 1977 (Nito Alves). Como escreveu Karl Marx, a história repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa.Mas se o presidente e o seu círculo podem entreter-se a planear e a criar inventonas, o que estarrece é o papel do poder judicial angolano, ou, melhor dizendo, a aparente ausência desse papel.A Constituição de 2010 consagra a independência do poder judicial (artigo 175.º) e impõe a este o dever de assegurar a defesa dos direitos legalmente protegidos, a garantia do contraditório e a repressão de violações da legalidade democrática (artigo 174.º).Acresce que os juízes têm como função nobre e primacial a garantia da observância da Constituição e das leis, bem como a proteção dos direitos dos cidadãos. É por isso que o poder judicial acaba por desempenhar o papel mais importante numa democracia, pois é ele que limita e controla o poder. Sem a intervenção dos juízes, poderemos estar perante uma ditadura eletiva, como sublinhava o jurista inglês Lord Hailsham. Assim, temos de perguntar: o que fazem os juízes angolanos para preservar a democracia? Que papel têm desempenhado no cumprimento da legalidade no caso da inventona? Assinaram os mandados de detenção? Existiram interrogatórios judiciais? Garantiram aos detidos os seus direitos constitucionais?É nestes momentos que se podem revelar a força e a capacidade da magistratura. Quando nos Estados Unidos o poder político hesitava em conceder direitos aos afro-americanos, quem interveio e decidiu que todos tinham direito a uma educação igual? O Supremo Tribunal Americano, no famoso caso Brown v. Board of Education 347 U.S. 483 (1954).É o que se espera do poder judicial angolano: a defesa da democracia angolana. Atendendo à qualidade dos normativos constitucionais angolanos, admira que a sua aplicação não esteja a ser escrutinada pela opinião pública. Aparentemente, há detenções sem mandado, como no caso do capitão Zenóbio Zumba, e outras manifestações de desrespeito pelo processo penal.Portanto, a questão é: onde estão os juízes?Num Estado democrático de direito, nenhuma das ações até agora tomadas contra os alegados perpetradores do “golpe” – prisão, buscas, entre outros – poderia ter ocorrido sem autorização judicial. Se houve intervenção judicial nessas ações, tem de haver possibilidade de se interporem recursos; se não houve, estamos perante detenções ilegais, e deve ser utilizado o habeas corpus para confrontar a justiça angolana com as suas responsabilidades constitucionais.Este é o tempo de a justiça angolana agir na defesa da legalidade democrática. Não há democracia sem juízes imparciais.

Rui Verde

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